Atores e Convites Inesperados: Um Caso de Sucesso no Cinema Nacional
“Eu recebi uma mensagem falando: ‘queria te fazer um convite para participar de uma cena com a Fernanda Montenegro. Você topa?’ Eu pensei: isso é golpe!”, lembra, rindo, o ator Fagundes Emanuel, 31, do Recanto dos Humildes, em Perus, zona norte da capital.
Felizmente, a mensagem não era um golpe, mas sim um convite da produtora de elenco do filme Ainda estou aqui, que se tornou um sucesso de bilheteria nacional. Ontem (5), Fernanda Torres foi consagrada como a melhor atriz na categoria Drama no Globo de Ouro, uma das maiores premiações do cinema mundial. O longa ainda foi indicado a melhor filme em língua não inglesa e aguarda a indicação para o Oscar de 2025.
Enredo e Participação de Destaque
No drama dirigido por Walter Salles, Fagundes interpreta um dos netos da advogada Eunice Paiva, papel encenado por Fernanda Torres, filha de Fernanda Montenegro, que também vive Eunice em sua fase mais velha. O enredo narra a história da advogada, esposa do ex-deputado Rubens Paiva, torturado e morto pela ditadura militar.
“Me senti privilegiado e sortudo de presenciar o reencontro de Walter Salles com a Fernanda Montenegro desde o ‘Central do Brasil’. Salles é uma pessoa extremamente doce, sensível, muito alegre e que deixa o ator ter o tempo dele. Foi uma grande aula ver os dois trabalhando ali do meu lado”.
O filme Central do Brasil, de 1998, também dirigido por Walter Salles, concorreu ao Oscar em duas categorias: melhor atriz, com Fernanda Montenegro no papel de Dora, e melhor filme estrangeiro.
Ansiedade e Realização na Pré-estreia
No dia da pré-estreia, a ansiedade dominava o ator. Assistir à história ao lado de colegas que admira na vida real foi um grande privilégio. “Junto com todo mundo estavam Selton Mello e Fernanda Torres. Isso para mim já foi uma das coisas mais incríveis daquele momento”. Em 2024, o filme venceu o Festival de Veneza como melhor roteiro.
Para Fagundes, a presença de um filme com uma história tão marcante do Brasil em uma das maiores premiações do cinema mundial é extremamente relevante, assim como a sua repercussão.
“Espero que esse alcance também chegue nos produtores de elenco, diretores, roteiristas e que eu possa continuar, como artista periférico, esse sonho de ter trabalho remunerado no audiovisual”.
Arte e Realidade: Ditadura Militar e Periferias
O filme narra a trajetória de Eunice em busca de justiça após o desaparecimento do marido, Rubens Paiva, capturado pelos militares durante a ditadura civil-militar (1964 a 1985). A história é baseada no livro “Ainda Estou Aqui”, escrito por Marcelo Paiva, filho de Eunice e Rubens, e se passa na zona sul do Rio de Janeiro e em áreas nobres de São Paulo.
Bem distante desse cenário, as periferias da Região Metropolitana também foram severamente afetadas pela ditadura. Relatórios da Comissão da Verdade, que funcionou entre 2012 e 2014, revelam que presos políticos foram torturados e mortos em cemitérios das periferias como indigentes.
“Em Perus tivemos uma vala comum, de presos e desaparecidos políticos da ditadura, e a história do filme é a história de um desaparecido político, o Rubens Paiva, preso no Rio de Janeiro. Ninguém sabe para onde ele foi levado”, lembra Fagundes.
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Para o ator, produzir um filme nacional focado na história de uma mulher é fundamental. “Ela [Eunice] é uma heroína, que nunca deixou de pensar na memória do ex-marido. Depois ainda foi uma grande ativista para os direitos indígenas”.
Ele recorda que a história nas telonas é de uma família de classe média alta, com membros notórios e influentes.
“Falta muito retratar a memória da periferia nos filmes […] Foi uma crueldade sem limites o modo como a ditadura atravessou e atravessa até hoje as pessoas da periferia”.
‘Ainda estou aqui’, em Perus
Nascido em Taguatinga, no Norte de Pernambuco, Fagundes mudou-se para São Paulo ainda criança, morando em Caieiras, na Grande São Paulo, até os 6 anos. Depois, mudou-se para Recanto dos Humildes com a família, o que considera a “sorte de ter aterrizado neste país Perus”, um polo de resistência e cultura para ele.
Aos 13 anos, Fagundes começou a frequentar aulas de teatro no Centro Educacional Unificado e no Teatro Vocacional da Prefeitura de São Paulo. Ali, conheceu o grupo teatral Pandora, que existe há 20 anos, e ajudou na elaboração do espetáculo “A revolta de Perus”.
“[A peça] foi fruto de uma pesquisa sobre a história do bairro. Um dos temas foi a vala comum [usada por militares na ditadura para enterrar perseguidos políticos como indigentes], as ações do Sindicato dos Trabalhadores de Cimento, Cal e Gesso, a história do lixão e os acidentes de trens”, enumera, sobre as diversas memórias do distrito.
A primeira fábrica de cimento, cal e gesso do Brasil foi inaugurada em 1926 nas proximidades da estrada de ferro Perus-Pirapora. Os trabalhadores organizaram diversos movimentos de luta por melhores condições de vida, por meio do Sindicato dos Trabalhadores de Cimento, Cal e Gesso.
Fonte: Memorial da Resistência
Em paralelo, aos 18 anos, ele ingressou na Companhia de Teatro São Jorge, onde atua até hoje. Também passou pela Companhia do Feijão e pelo Quilombaque, centro cultural de Perus que abrange diversas atividades e coletivos. Por meio desse espaço, Fagundes teve importante participação na formação política da região. Ele foi da terceira turma de humor da SP Escola de Teatro e atuou no Centro de Pesquisa Teatral, no Sesc Consolação.
Na TV, Fagundes estreou na novela Geração Brasil aos 20 anos, em 2014. Viveu o personagem Mosca, do núcleo cômico da novela, e formou diversas amizades que o ajudaram a resgatar sua origem nordestina e a se fortalecer no desafiador universo das artes.
O Bom Filho à Quebrada Torna
Se hoje Fagundes está nas telonas, ele acredita que deve essa conquista também ao distrito de Perus, que “foi como uma mãe nesse percurso artístico”.
Ele considera o personagem Murilo, protagonista do longa Lua em Sagitário, de 2016, um dos principais trabalhos de sua carreira. O filme narra a história de um jovem que vive em um assentamento do Movimento Sem Terra e trabalha em uma cooperativa com a mãe. A estreia aconteceu no CEU Perus, com a sala de cinema lotada por familiares e amigos emocionados.
“Eu achei lindo! No final, meu pai disse: ‘É sua história no filme’. Ele fez um link entre o jovem da ocupação rural do filme e a ocupação urbana onde moramos. Desde esse dia, sempre ressalto que cresci em uma ocupação”.
A visibilidade dos trabalhos não diminui a falta de oportunidades para pessoas periféricas no meio artístico. No entanto, ela ajuda a abrir portas para que outros jovens das quebradas possam sonhar com a carreira.
“O grande sonho do artista brasileiro que não é herdeiro é sempre continuar trabalhando em projetos legais que façam sentido com seu discurso pessoal”.
Jéssica Moreira, ex-correspondente de Perus, colaborou com esta reportagem
Esta reportagem foi produzida com apoio da Report For The World.
Fonte: https://agenciamural.org.br/ainda-estou-aqui-nas-periferias/