O Desafio da Educação em Paraisópolis Durante a Pandemia
Aos 11 anos, Gabriel Silva*, morador de Paraisópolis, sonha com o aprendizado da leitura. Estudante da rede municipal de São Paulo, Gabriel faz parte de um grupo de crianças cuja alfabetização foi impactada pela pandemia de Covid-19.
Durante o ensino remoto, Gabriel utilizou um tablet fornecido pela prefeitura, com acesso à internet. Contudo, para sua mãe, Maria da Silva*, 41, o dispositivo não foi prático. “Não conseguia ajudar nas lições. Sou empregada doméstica e trabalho o dia todo fora de casa”, explica ela, também mãe de outros três filhos.
Gabriel expressa sua frustração: “Gosto de conversar com amigos tanto em jogos como free fire como nos grupos que temos no Whatsapp. Gravo áudio ou minha irmã escreve pra mim. Meus amigos não sabem que não sei ler. Não quero que eles saibam, isso me deixaria triste”.
“Eu sento do lado dos meus colegas e eles vão lendo, finjo que sei ler, e assim vou indo. Também tenho medo deles descobrirem que não sei ler e virar piada por conta disso”, afirma.
Gabriel não é um caso isolado na cidade, o que ilustra os desafios enfrentados por estudantes das periferias e o impacto das aulas de reforço oferecidas pela rede municipal.
Procurada, a prefeitura confirma que a pandemia prejudicou os alunos, mas afirma que as aulas de recuperação trouxeram resultados positivos.
Resultados Educacionais
Segundo a RME (Rede Municipal de Ensino), a Provinha São Paulo, aplicada aos estudantes do 2º ano do Ensino Fundamental desde 2018, revelou que entre 80% a 90% dos alunos estão alfabetizados. Em 2023, 86,9% dos estudantes atingiram esse nível, indicando que pelo menos 1 a cada 10 alunos não alcançou o esperado.
Outro estudo, o “Índice Criança Alfabetizada 2023” do MEC (Ministério da Educação) e Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), aponta que cerca de 62% das crianças paulistanas não estão alfabetizadas na idade prevista de 7 anos. Contudo, as instituições alertam que os dados não são comparáveis.
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Adolescência e Reforço Escolar
João Silva*, 13, irmão de Gabriel, também teve a alfabetização comprometida pela pandemia. “No grupo de amigos do WhatsApp, quando há conversas escritas, ele pede para a irmã mais velha ler e responder por ele. Isso o deixa mal”, relata Maria.
Em 2023, a escola comunicou Maria sobre as aulas de reforço para Gabriel, oferecidas duas vezes por semana. No entanto, Gabriel não conseguiu frequentar as aulas devido à falta de transporte.
Em 2024, Gabriel começou a participar das aulas, porém com resistência. “Ele sente vergonha de não saber ler, e isso o desmotiva a ir à escola”, desabafa Maria.
O reforço escolar que Gabriel e João frequentam faz parte do Projeto de Recuperação de Aprendizagem, uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo para apoiar estudantes afetados pela pandemia.
Segundo a Secretaria Municipal de Educação, as atividades são conduzidas por professores designados e incluem materiais didáticos específicos. A meta é que todas as crianças estejam alfabetizadas até o final do 2º ano do ensino fundamental.
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Desafios das Aulas de Reforço
Rosângela Santos*, 35, coordenadora pedagógica da rede municipal, destaca que todos os ciclos necessitam de reforço. “A pandemia trouxe uma grande lacuna no aprendizado. Além disso, o tablet não funcionou em muitas regiões por conta da falta de internet, e muitos alunos não souberam usá-lo. A socialização, essencial para o aprendizado, também foi prejudicada”, explica.
‘Temos materiais didáticos excelentes, mas falta mão de obra. Não é porque o professor não quer, é porque ele já tem a carga completa‘
Rosângela, educadora
A coordenadora acredita que a Secretaria Municipal de Educação precisa contratar mais professores especializados para o reforço escolar, não apenas para o 2º ano, mas para todos os anos.
Incentivo em Casa
João participa das aulas de reforço, mas enfrenta dificuldades em várias disciplinas. “Ele comenta sobre português e matemática, mas as barreiras estão em todas as matérias”, diz Maria.
Apesar das dificuldades, Maria busca estimular os filhos com gibis, presentes de professores para quem ela trabalha.
‘Na viela onde moramos, eles folheiam os gibis, observam as imagens e tentam imaginar as falas dos personagens. É uma maneira de manter o sonho de aprender vivo, mesmo com todos os desafios‘
Maria, mãe de Gabriel e João
Esse estímulo é crucial, aponta Fernanda Renner, 47, professora alfabetizadora e coordenadora pedagógica do Pró-Saber São Paulo, ONG que já atendeu 18 mil crianças desde 2003.
“O que eu observo é um pouco contato com leitura, com literatura, com o hábito de ler todo dia, com a familiaridade com o livro enquanto objeto. Não porque as crianças não gostem, mas por falta de acesso mesmo”, explica Fernanda.
Para Fernanda, a alfabetização é um direito essencial de cidadania que deveria ser garantido a todas as crianças.
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A pedagoga ressalta que a pandemia agravou o cenário educacional, afetando crianças que deveriam ter sido alfabetizadas entre 2020 e 2021. “Essas crianças, que hoje têm 10, 11 anos, estavam naquele momento crucial da alfabetização, mas tiveram seu aprendizado completamente deixado de lado”, conta Fernanda.
A solução, segundo Fernanda, passa pela implementação de políticas públicas que identifiquem as crianças em atraso e invistam na formação de professores, na infraestrutura escolar e em uma educação mais inclusiva. “A alfabetização vai além de ensinar letras e sílabas; é uma ferramenta de transformação social e construção de cidadania”, enfatiza.
Fonte: https://agenciamural.org.br/criancas-enfrentam-dificuldades-para-alfabetizacao-pos-pandemia-em-sp/